8.1.07

Hoje



Há daqueles dias em que me sinto um íman de tristezas, é como se eu fosse de uma superfície doce e pegajosa, e elas a colarem-se a mim feitas moscas de Inverno, moles, moribundas. Vêm gordas, bem alimentadas, lentas e apreciam sobretudo temperaturas frias e dias nebulosos. Nunca solitárias, fazem do conjunto a sua força e da discrição a sua arma. E raramente nascem cá dentro, não, preferem os ares exteriores para as suas viagens, contagiando depois ao pousar,
e então assim, atravessam a pele e correm pelo sangue.
(...) Nestes dias é como se pairasse sobre a cidade uma nuvem feita de lágrimas ou angústia a sombrear transeuntes desprevenidos. Só assim consigo explicar a coincidência e a série desencadeada que marca a viagem do meu dia como migalhas num trilho de conto. O que vejo obriga-me inevitavelmente a supor, a tentar adivinhar justificações e a produzir histórias. Sou alimentado por imaginações fúnebres de agitadas discussões conjugais, severos diagnósticos médicos, mortes de parentes, acidentes de viação, notícias infelizes e vidas que desgraçadamente tiveram aquele dia que volta e meia lá calha. Recolhendo as migalhas, encho o bandulho de infelicidades e perco aos poucos a resistência. Começo a sentir um indicador insistente a tocar-me o ombro pedindo que me volte para não deixar escapar mais um episódio.

José Maria Vieira Mendes, Infelicidades

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